sábado, 13 de março de 2010

GUERRILHA DO ARAGUAIA

A Guerra Popular Prolongada do Partido Comunista do Brasil (PC do B)

Em 1956, o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) traçou novos rumos para o movimento comunista internacional, propondo a coexistência amistosa entre os blocos antagônicos da “guerra fria” e pregando a transição pacífica - via eleitoral, principalmente – para a chegada ao socialismo. No Brasil, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), inteiramente alinhado à matriz soviética, resolveu também abrandar as formas de agir, decisão tomada no seu V Congresso, em 1960, quando foram expulsos dos seus quadros Maurício Grabois e João Amazonas, entre outros, que teimavam em postular a priorização da luta armada. Os comunistas do “Partidão”, assim, passaram a adotar a defesa da “via democrática” para a chegada ao poder e a conseqüente implantação da ditadura do proletariado, dentro da concepção leninista de que “a Democracia não é mais do que uma tática descartável como todas as táticas”.

Em 1962, enquanto o Brasil vivia a plenitude do exercício de um regime político inteiramente democrático, o PC do B, surgido do cisma ideológico do PCB, passou à defesa intransigente da tomada do poder pela “violência revolucionária”, para a imposição de um “governo popular e revolucionário”. A expressão “violência” não era mero instrumento de retórica para caracterizar um eventual incremento no ardor da revolução, mas, sim, um conceito doutrinário pelo qual não aceitavam nenhuma transição que não passasse pelo caminho das armas, como ensinava Mao Tse-tung, maior ideólogo da revolução chinesa: “não é possível transformar o mundo a não ser com o fuzil”. Dessa maneira, rompido com o centro irradiador tradicional, o PC do B foi buscar na China o exemplo a seguir, encontrando a fórmula da “Guerra Popular Prolongada”, pela qual atuaria o “Exército Popular”, a surgir da mobilização e organização das massas camponesas e “capaz de travar a guerra regular e empreender batalhas decisivas”. Para realizar toda essa intrincada estratégia revolucionária, urgia um começo, logo imaginado com a tentativa de organizar um movimento guerrilheiro, definido como: “a forma principal de luta na fase inicial da guerra popular, através da qual é que se poderá iniciar a ação armada contra os inimigos da Nação e começar a estruturar as Forças Armadas Populares”.

A formação de quadros do PC do B para a constituição do emergente núcleo guerrilheiro teve origem com o envio à China, em 1964 e ainda durante o governo João Goulart, do primeiro de um total de três grupos de militantes para treinamento na Academia Militar de Pequim.

A área escolhida para a implantação da guerrilha foi o “Bico do Papagaio”, no Estado de Tocantins, limitado, ao sul, pelo paralelo que passa pelo município de Araguanã; pelo rio Araguaia, a oeste; e pelo rio Tocantins, ao norte e leste. Genericamente chamado de Araguaia pelas partes conflitantes, o palco de operações, forrado por exuberante floresta equatorial, reunia excelentes condições para o esforço do PC do B na conquista do apoio da rarefeita população de cerca de 20 mil habitantes, em aproximados 7000 km2, historicamente esquecida por todas as esferas governamentais e vítima de graves carências sócio-econômicas. Os conflitos de terra e a pobreza eram motes valiosos para o trabalho de massas, assim como qualquer paliativo que viesse trazer alívio aos efeitos das deploráveis condições médico-sanitárias existentes.

Desde 1966 o PC do B passou a infiltrar militantes para o Araguaia, os quais logo tentaram conquistar a simpatia dos locais, por meio de alguma assistência social e de noções de organização comunitária, tudo acompanhado de crescente proselitismo político. Enquanto isso, os infiltrados passaram a familiarizar-se com o terreno hostil e apurar o adestramento militar, com a prática de: tiro; sobrevivência, orientação e deslocamento em área de selva; e técnicas de incursões armadas, fustigamentos e emboscadas. Os primeiros elementos chegados à região eram eminentes membros do Partido e quadros com o curso de capacitação militar realizado na China. Dentre os pioneiros citam-se: Osvaldo Orlando da Costa, Maurício Grabois, Líbero Giancarlo Castiglia, Elza Monerat, Ângelo Arroyo, João Amazonas, João Carlos Haas Sobrinho e Nélson Piauhy Dourado. Desses, não morreram na luta João Amazonas, Elza Monerat e Ângelo Arroyo, que desertaram em fases diferentes do conflito.

As “Forças Guerrilheiras do Araguaia” (FOGUERA) surgiam como o embrião de um movimento guerrilheiro com o qual o PC do B pretendia a sua Guerra Popular Prolongada. Premente se tornava dar-lhes forma para passar às operações de combate, sobretudo pela inevitável presença do oponente, ainda em pleno processo de organização delas. Para esse mister debruçou-se a Comissão Executiva do Partido, integrada por elementos do Comitê Central e única responsável pelos contatos das Forças com o mundo exterior. Subordinada, então, à Comissão Executiva estruturou-se a Comissão Militar (CM), encarregada de estabelecer, segundo estritas diretrizes recebidas: a estratégia de atuação guerrilheira; o treinamento militar dos destacamentos subordinados; e, entre outras, a atuação dos destacamentos junto às massas. Finalmente, à CM enquadravam-se três Destacamentos, constituídos de Grupos de sete elementos cada, assim nomeados: o “A”, com atuação na região da Transamazônica; o “B”, atuante no vale do Gameleira; e o “C”, com ações a sudoeste da serra das Andorinhas. Ao todo e até o final das operações o efetivo das FOGUERA beirou os setenta integrantes.

A organização das Forças era celular e obedecia a rigorosa “compartimentação”, com vistas à proteção do sigilo das operações e a preservar a identidade dos componentes. Assim, apenas o comandante o subcomandante de Destacamento conheciam as áreas de atuação de seus Grupos e de outros Destacamentos, bem como somente os comandantes de Destacamentos conheciam os locais de encontro com os integrantes da Comissão militar.

Pelo pretexto de não dispor de uma estrutura administrativa que lhes permitisse isolar desertores, elementos não-colaboradores ou militares eventualmente caídos prisioneiros ou feridos, as FOGUERA constituíam os “Tribunais Revolucionários” para “julgar” e “justiçar” indesejáveis. A esse poder supremo são creditadas as mortes de Rosalino Cruz Souza, militante desertor, e dos moradores locais Osmar, Pedro “Mineiro” e João “Mateiro”. A eliminação fria de inimigos foi tacitamente admitida no chamado Relatório de Ângelo Arroyo (Editora Anita Garibaldi – 1996), de autoria de um dos dirigentes da Comissão Militar, que assinalava como erro de “certa importância” para a derrota no Araguaia: “Não se ter justiçado determinados inimigos. É o caso dos bate-paus como Pernambuco, Antônio e o irmão, e talvez os elementos que haviam chegado de fora, suspeitos de pertencerem ao Exército”. Tais “órgãos de justiça” eram motivo de intensa propaganda, objetivando desestimular delações e constituir elemento de pressão psicológica. Irracional e vítima da “racionalidade guerrilheira”, a cadelinha “Diana”, mascote do Destacamento “A”, foi justiçada a facadas, pelo militante Micheas Gomes de Almeida, o “Zezinho”, acusada de denunciar a posição do Destacamento, por deslocar-se, levada pelo instinto materno, do ponto onde se encontrassem os seus amigos homens até o lugar onde estavam os seus filhotes, para, simplesmente, dar-lhes de mamar.

Quase oito anos se passaram na tentativa do PC do B de formar um movimento guerrilheiro que viesse empolgar as massas para a Guerra Popular Prolongada. O Relatório Arroyo exagerou e muito no “sucesso” obtido junto à população, contabilizando o apoio de 90% dela. Admite-se que, no máximo, cerca de 180 (cento e oitenta) habitantes locais, direta ou indiretamente, tenham aderido como combatentes ou colaboradores.

Durante tempo considerável, as FOGUERA ficaram isoladas do restante do País e sujeitas à sobrevivência pelos meios próprios e pelo que pudessem amealhar na selva onde se embrenharam. A caça e a pesca, apesar de abundantes, eram as únicas fontes de alimentos disponíveis. Por essa razão, o prosaico jabuti tornou-se verdadeiro símbolo da sobrevivência, merecendo a folclórica promessa da CM de eternizá-lo em estátua, “quando viesse a vitória do movimento”. Essa desesperadora situação de 1973 e o total abandono a que foram relegadas pelo Partido mereceram a crítica de Pedro Pomar, integrante do Comitê Central, que em 1976 admitiu ter o Exército conseguido, na ofensiva final, em menos de três meses dispersar os destacamentos guerrilheiros e até mesmo atingir e desmantelar a Comissão Militar. Segundo ele, a direção do Partido nas cidades perdeu o contato com os camaradas do sul do Pará, e não sabia quantos deles sobreviveram ou se sobreviveram. Ainda segundo Pomar, por dois anos o Comitê Central e o Partido ficaram em compasso de espera, confiando que alguma coisa ou informação desfizesse as dúvidas sobre o destino dos camaradas que se encontravam no Araguaia e sobre o fim ou não da luta guerrilheira.

A autocrítica é ainda mais ácida no Relatório Arroyo que apontou, dentre os inúmeros erros da Comissão Militar, o pequeno número de ações provocadas de moto próprio em dois anos de luta, o que ele constatou pelo fato de que a imensa maioria das baixas decorreu do fator surpresa, em decorrência do Exército ter mantido sempre a iniciativa das ações.

O PC do B também não dedicou nenhuma atenção ao restante dos militantes de base, que até 1976 desconheciam o fracasso no Araguaia e durante todo o tempo mantiveram-se iludidos pela propaganda ufanista provinda da Rádio Tirana da Albânia.

O fanatismo, a cega devoção à causa, e o entorpecimento de valores éticos e morais transformaram alguns integrantes das FOGUERA em lendas vivas aos olhos de humildes moradores locais, que, crédulos, chegavam a considerá-los verdadeiros totens e senhores da imortalidade, como Osvaldo Orlando da Costa, o “Osvaldão”, e Dinalva Conceição Teixeira, a " Dina".

A “saga” dos combatentes das FOGUERA e os seus decantados “heróis” não foram suficientes para levar a aventura a nenhum resultado prático, sobretudo pela falta de efetivo apoio político externo, já que a China, fonte inspiradora inicial, já buscava estabelecer relações diplomáticas com a “ditadura fascista brasileira”. Curiosamente, hoje a esquerda brasileira, malgrado críticas do próprio PC do B, dá ares de vitória ao movimento, ao qual rotula de “guerrilheiro” e, por conseguinte, merecedor do amparo das leis da guerra, especialmente da Convenção de Genebra. Desmemoriada por interesse, não considera que a violência revolucionária era um princípio ilegal, de uma entidade clandestina, que não contemplava a Democracia como um fim e nem mesmo como etapa política, e que transgredia o ordenamento jurídico de uma Nação soberana e legalmente reconhecida no concerto das Nações. Tudo, em suma, denota simplesmente o esforço em sacralizar um bando fora-da-lei, banalizando o crime em nome de uma finada ideologia.